domingo, maio 22, 2005

Ela II

Baixei a cabeça, como sempre fazia em situações destas, e numa sucessão de acenos temporalmente bem espaçados, fui dizendo “Sim padrinho” até ele se calar. Admito que desta vez abusei um pouco e pensava, honestamente, que teria de ir embora devido à minha fuga. Afinal foi bem mais simples que isso. Já com os cantos da boca cheios de saliva, e com a cara tão vermelha que parecia que ia explodir, ali estava ele, o padrinho, a dizer-me que, como castigo, ia ter de ajudar a Julieta na cozinha até segundas ordens. Muito bem, dirigi-me para a cozinha e dei um beijo barulhento na face da velha Julieta.
- Adivinha quem te vai ajudar aqui nos próximos tempos ? , disse-lhe eu enquanto ía roubando um pedaço de bolo que tinha acabado de sair do forno.
- Olha lá Clarita, ainda vais ficar doente e depois não te venhas cá queixar. Uma pessoa para me ajudar? Quem? Se for o Zé das Caldas avisa já o teu padrinho que não o quero cá. Da ultima vez que entrou na minha cozinha. Nem quero pensar, nem quero pensar...
- Não Julietita.
Brinquei eu com ela, brinco sempre pelo facto de ela me chamar Clarita. É a única pessoa que o faz e eu gosto. Alias tenho tamanha estima pela Julieta que seria impossível descrever. É como uma mãe para mim.
- Sou eu!
- Tu?!? Que fizeste agora? Aí meu Jesus, mas onde tens tu a cabeça. Sabes bem que o Sr. Miguel anda a ter muita paciência para contigo. Tem cuidado filha, toma atenção à vida. Aí meu Jesusito!
- Tem calma Julieta. Vai correr tudo bem. Corre sempre tudo bem, independentemente de como corra.
Disse-lhe eu a rir.
- Diz lá. Por onde começo?
- Olha filha, primeiro arruma o que compraste no mercado e depois quero que me faças um favor. A D. Adelaide pediu-me para lhe fazer uns bolinhos de laranja. Eu fi-los e agora há poucos dias pediu mais. Quero que lhos vás entregar, mas sem o Sr. Miguel saber.
- Então?
Desconfiei. A Julieta não era assim. Apesar de tudo fazer para ajudar todas as raparigas da estalagem, era sempre muito fiel ao Padrinho. Alias, há quem diga que foram apaixonados no passado e daí o facto dela trabalhar para ele há tanto tempo. Mas agora, pedir-me para fazer algo tão inocente de forma secreta fez-me estranhar.
- Sabes - disse-me ela – é que a D. Adelaide paga pelos bolinhos. E se isto se fica a saber, tenho medo de me mandarem embora, entendes?
- Entendo. Mas mesmo assim acho estranho. Já tentaste falar com o Padrinh... – fui interrompida antes de terminar a frase.
- Olha, se não queres ir diz-me logo, mas não me faças perder mais tempo, esta bem?
- Tem calma Julietita. Eu vou, claro que vou. Por ti faço tudo.
Dei-lhe um beliscão, ela resmungou e eu comecei a arrumar tudo.

Já era fim de tarde quando sai da estalagem. Tive de inventar uma desculpa, com a ajuda da Julieta, para pedir ao padrinho que me deixasse ir quando os fregueses começavam a chegar. Enfim, depois de muitos por favores e de lhe explicarmos que a minha ausência seria por pouco tempo, fui a cozinha buscar os bolos e sai.
Gostava muito de andar a esta hora pelas ruas. Quando o sol ainda está presente, num amarelo intenso e nos aquece pela ultima vez. Quando a lua começa a nascer, e o vento passa perto, soprando, em pequenas rajadas dissimuladas, frases de arrepiar. Gosto do frio. É muito mais solitário que o calor. É muito mais parecido comigo. Resolvi ir pelo caminho mais longo. Quero aproveitar bem o momento. Fui andando para o Jardim. No coreto alguns meninos brincavam em alegres correrias. Ainda estavam algumas pessoas a passear. Senhoras sentadas em bancos com poses muito direitas e estáticas, falavam baixinho entre si. Os Homens, mais alem, discutiam política e os mais velhos fumavam cachimbo. A medida que fui passando as senhoras interromperam a conversa e olharam para mim. Sabiam quem eu era e eu sabia que elas não me aprovavam. Para elas eu era como o vento. Não é desejado e se não existir, melhor ainda, pois pode estragar o penteado. Neste caso, a pose de senhoras de família. Digo isto porque alguns dos excelentíssimos esposos destas Senhoras tão finas já me conheciam mais intimamente. Não liguei aos olhares e aos comentários que, suavemente se podiam ouvir. Continuei a andar.
Cheguei a casa da D. Adelaide. Era uma mulher simples e simpática. Dava passinhos pequenos quando andava, era gordinha e muito baixa. Todo aquele quadro, apesar de ser feito de extremos físicos, dava origem a um ser extremamente acolhedor e engraçado. Ela era viuva, não era muito afortunada como outrora tinha sido, mas vivia feliz e apesar de tudo, tinha conseguido manter amizades fortes entre algumas Senhoras da alta sociedade que ainda lhe atribuíam um estatuto de Senhora fina.
- Boas tardes D. Adelaide. Aqui tem os bolinhos que encomendou a Julieta.
- Olá Clara. Aí que já nem me lembrava deles, mas deixa ver. Sim senhor, têm bom aspecto, disso não há duvidas.
Enquanto dizia isto, pegou num bolinho e começou a trinca-lo.
- Humm...que delicia. Que mãos divinas tem a nossa amiga Julieta. Oh, mas sentai-vos. Peço desculpa pela confusão mas o meu filho Daniel chegou ontem a tarde de viagem. Veio da capital, onde se formou advogado. É a luz dos meus olhos. Aí... Mas esperai aí um instante que vou buscar a paga pelos bolinhos.
Voltou instantes depois. Despedimo-nos enquanto ela ia continuando a dar dentadas no bolinho e sai deixando atras das costas um “ Até um dia destes” que me saiu espontaneamente.

Quando a porta da casa da D. Adelaide se fechou, reparei que já tinha escurecido e que as ruas estavam agora muito mais vazias. Comecei a andar. Sentia-me tão livre. Tão curiosamente feliz. Fui andando com um sorriso colado a cara. Daqueles verdadeiros e que não se podem evitar. Daqueles que surgem quando vou na rua e uma criança se vem meter comigo. Nessas alturas, e mesmo que não haja razão para um pingo de alegria, começo a sorrir e fico leve, inconscientemente leve. Gosto desses momentos que cada vez, com menos frequência, vão surgindo. Alturas em que vivo tão violentamente que chego a asfixiar-me. Alturas em que uma força maior do que eu nasce dentro de mim e me faz agir, mexer e sentir intensamente. Faz-me querer mudar. Faz-me querer viver mais, muito mais, cada dia e cada instante como se não houvesse amanha. Era assim que me sentia agora. A Julieta costuma dizer que isto passa com a idade e que chega a uma altura que já não queres fazer mais e melhor. Limitas-te a querer fazer e ficas contente por isso. Eu não vou ser assim. Sinto-o cá dentro que comigo vai ser diferente. O sino da igreja toca. Sete badaladas!! Meu Deus, o Padrinho Miguel vai esfolar-me viva. Começo a correr pelo caminho escurecido que tenho a minha frente, mas desta vez corto caminho e vou pela rua do Rio.
Corro tão depressa que só me apercebo do que se passa quando embato com a cara no chão.

- Está bem? Peço imensa desculpa. Deixe-me ajuda-la a levantar-se.
- Não. Está tudo bem, só estou um pouco tonta.
- Calculo que sim, fui uma queda feia. A sua sorte é que estava mesmo a passar por aqui. Reparei que ia com pressa.
Já de pé, tento compor-me e tentar olhar de frente para o Homem que me ajudou, sem demostrar o meu embaraço.
- Obrigado por tudo. Eu estou bem. Foi gentil de sua parte, mas tenho de ir agora. – digo eu enquanto vou olhando para o chão e me afastando lentamente. Que vergonha! Vou a correr, tropeço numa pedra e tenho logo de cair em frente a alguém. O pior vai ser o Padrinho. Oh meu Deus, desta vez não me vai perdoar! Tenho a certeza. Penso nisto enquanto me afasto do local da queda deixando o homem perplexo a olhar para mim. Subitamente, num tom de voz insegura oiço:
- Beatriz?
Demoro algum tempo até conseguir raciocinar, mas quando o faço páro imediatamente. O Homem de ontem a noite. Não pode ser! Como me reconheceu ele? Impossível, estava tão escuro...Viro-me para trás. Ele lentamente, tinha começado a andar em minha direcção. Até que chegou e me segurou na mão:
- Eu sabia que eras tu. Desde ontem que não consigo pensar em outra coisa. Por muito que me esforce só consigo trazer a memória instantes da noite de ontem. Por favor, deixa-me acompanhar-te até casa.
Eu não sabia o que dizer. Fiquei parada a olhar para ele. Aquele homem, ali a minha frente a dizer-me tanta coisa. Eu obriguei-me a esquecer aquele encontro atribulado. Nunca imaginei que o voltaria a encontrar. E agora ali estava ele a segurar a minha mão e a pedir-me para me acompanhar ate casa. Estava ali a olhar para mim nos olhos e agora eu conseguia ver como era alto, bonito e como o seu olhar me assustava. Invadia-me a alma de uma forma avassaladora. Sentindo a adrenalina a explodir no meu corpo disse-lhe “ Desculpe-me” e comecei a correr. Tal como ontem, penso eu. Parece que só sei correr. Fugir, fugir, fugir. Sempre fugir. A verdade é que aquele homem, aquele estranho, era muito mais que um estranho e que um homem qualquer. Era uma incógnita, uma onda de sentimentos que me transmitia sempre que estava por perto. Sentia-me fraca, tremia. Sentia o mais intimo de mim invadido por aqueles olhos castanhos que brilhavam devido ao reflexo da luz pálida da rua.
Cheguei a estalagem. Por sorte o Padrinho não estava por perto. A pobre Julieta já estava em cuidados, mas felizmente ninguém tinha dado por minha falta. A estalagem estava cheia como sempre. Muitos homens, muito vinho e muitas historias lançadas para o meio da mesa. Historias da vida e do Mundo que eram embaladas pelo calor que a lareira expelia. Eu comecei a trabalhar, como todas as noites a servir vinho de mesa em mesa. Era bom, podia ouvir as noticias do dia e os acontecimentos mais recentes, mas por outro lado tinha de ouvir também comentários que não queria e, quando o Padrinho Miguel me dizia, subir as escadas até ao andar dos quartos com um freguês que lhe tinha pago os meus serviços adiantadamente. Entre o meu rodopio por entre as mesas e os bancos corridos da estalagem reparo na porta. Vem alguém a entrar. Quando olho melhor nem quero acreditar. É ele! Aquele com quem me cruzei há pouco, o Ricardo, suponho eu, vem a entrar e eu ali. Corro para a cozinha.
- Julieta, deixa-me ficar por aqui, por favor.