sexta-feira, maio 13, 2005

Ela I

“A vida escolheu-me.” Penso nisto enquanto vagueio pelas ruas perdida em mim mesma. Penso na minha pouca sorte e na minha pouca fé. Nunca conheci os meus pais. Na verdade nunca conheci ninguém, nem mesmo a pessoa que se esconde dentro de mim. Aprendi desde cedo a resistir sozinha. Quando era pequena ainda sonhava. Era pura, sincera e apesar de não ter nada arranjava tudo só com a minha vontade de viver. Corria pelos becos mais sombrios e dava beijinhos as lavadeiras que me retribuíam com versos em minha honra e gargalhadas. O tempo foi passando e com ele instaurou-se a necessidade de pedir esmola à porta da Igreja todos os domingos. Era o único sítio onde se colhiam migalhas que as senhoras finas atiravam para o chão, na tentativa de salvar os pecados da carne. Agora já não tenho de ir ao domingo para a escadaria. Prometi a mim mesma que nunca mais imploraria aos pés de ninguém por uma moeda para ter que comer. Saiu-me caro o orgulho, pois para o sustentar tornei-me meretriz. Não fui eu que o escolhi, foi a vida que o escolheu por mim. Assim, todas as noites encontram-me homens velhos, porcos e famintos que vão até a estalagem onde, a muito custo, negociei um lugar para dormir todas as noites. Lá, procuram o que não têm em casa. Com umas poucas moedas de prata bebem vinho até o corpo não suportar mais e riem-se alto, tão alto que quase parece sinistro. Eu não passo de um produto que com cara de enterro, faz o que lhe é destinado sem nunca pensar, caso contrario tornar-se-ia insuportável.
Era tarde e fazia frio. Saí da estalagem cedo demais devido a uma briga que dois homens iniciaram por causa de uma desavença qualquer. Com medo do que poderia resultar dali, fugi escondida e agora deambulo no escuro. Avanço devagar pela rua calcetada e cheia de poças. O som do meu andar lento e pesado, como a minha alma, vai-se dissipando por entre a luz ténue dos candeeiros que iluminam o caminho. Não tenho pressa. Também não tenho para onde ir. Oiço um barulho e levanto a cabeça inconscientemente. Dois rapazes, pouco mais velhos do que eu e visivelmente embriagados, vão no sentido oposto, abraçados um ao outro para não se desequilibrarem. Passo por eles tentando não chamar a atenção, mas felizmente, nem me conseguem sentir de tão absorvidos que vão. Continuo o meu caminho. O vento agora tornou-se mais frio e por isso ponho o capuz da capa já velha e rasgada que trago vestida. Vou bafejando as mãos na tentativa de as manter quentes mas desisto. Se querem gelar até se tornarem cristal, que gelem! Acelero o passo e sinto o ar cortar-me a pele. Este penetra-me de tal forma que abre espaço para que uma angústia feroz me vá invadindo o pensamento. Subitamente oiço passos ao longe que me despertam da minha consumição. Escondo-me no escuro que a luz amarela que paira no ar não alcança. Observo sem fazer barulho. Até as minhas pulsações se calaram para não me denunciarem. O meu coração retraiu-se e bate depressa mas silenciosamente. Ao longe avisto um homem. Está sentado virado para o rio. Pelo que forço os meus olhos a ver, e pela postura que adopta ao sentar-se, aposto que deve ser de famílias abastadas. Como invejo a sua calma. Como invejo a sua descontracção. Como o invejo todo ele. Uma lágrima tenta saltar-me dos olhos, mas rapidamente a limpo para impedir que outras a sigam. Dou um passo para trás e no instante em que o meu corpo se impulsiona para voltar para a estalagem, surge-me a ideia: e se eu me fosse sentar ao lado dele? Poderia fingir que nos conhecíamos e que pertencíamos ao mesmo mundo. Poderia, por um instante, voltar aos dias de criança e sonhar acordada. Só um bocadinho. A ideia faz-me caminhar na sua direcção. A medida que me vou aproximando reparo que está a fumar. Isso cria uma nuvem esbranquiçada em seu redor e deixa escapar um cheiro diferente do que os homens têm na estalagem. Sento-me ao seu lado. Instantaneamente sou levada como por artes magicas para um outro lugar. Já não me sinto sozinha. Fico ali a olhar para o rio e sem que ele se aperceba vou-me chegando para lhe sentir melhor o cheiro. Quando dou por mim já o estou a tocar. Ele reparou e eu corei. O instinto faz com que eu me tente justificar. Digo-lhe que estou com frio. Pela reacção dele posso ver que não estava a espera que lhe dirigisse a palavra, mas mesmo assim responde-me com um início de conversa casual. Digo-lhe então para simplesmente fingirmos que já nos conhecemos na esperança de poder continuar o meu pequeno sonho. Para aumentar a fantasia, afirmo-lhe que me chamo Beatriz. Porque não? É nome de senhora fina e é assim que me sinto agora. Continuamos a conversar. Como é estanho este homem. Pensa de forma estranha. Diz-me que hoje se chama Ricardo simplesmente porque lhe apetece que assim seja. Silencio as minhas falas. A liberdade que ele transmite ao falar e ao dizer que cada um se pode chamar como quiser faz-me pensar muito. Principalmente porque eu mesma lhe disse que tinha um nome que na realidade não é meu. Fiz o que ele me fez, mas não com a mesma intenção. Sem eu estar a espera, ele fala sobre o rio e como gosta dele. Repentinamente um raio abate-se sobre mim. Que estou eu a fazer aqui? Levanto-me bruscamente. Não está certo viver algo que não me pertence. Nem está certo ser quem não sou. Assim, sem lhe dizer nada afasto-me apressadamente arrependida por me ter deixado iludir. Uma rajada de vento vem contra mim e afasta-me o capuz enquanto caminho. Volto a coloca-lo e começo a correr. Sinto muito frio e as minhas pernas já me doem, mas insisto um pouco mais, pelo menos até chegar a estalagem. As lágrimas que há tempo atrás tinha retido, começam então a escorrer-me pela face fria. Dou o que resta de mim à corrida e finalmente, após virar a esquina estreita, avisto a estalagem. Alguns fregueses ainda estão lá dentro. Bêbados resmungam consigo mesmo coisas que não quero entender. Passo a correr. Sinto uma mão agarrar-me o braço com força.
- Onde andaste? Esta noite deste-me prejuízo.
Após estas palavras, que nem tempo tenho de assimilar, um embate seco chega a minha cara e caio no chão, tamanha a força que trazia.
- É para aprenderes a não fugir a meio da noite. Tu trabalhas para mim e sem mim não és nada, ouviste fedelha?
Levanto-me a custo, baixo a cabeça, e ele vira-me as costas. Caminho para o canto onde durmo, junto da lareira. Aconchego-me a mim mesma e fecho os olhos.

O dia amanheceu claro. O frio que se fez sentir ontem desapareceu. Levanto-me e lavo a cara. Hoje é dia de mercado e como sempre, sou eu quem faz as compras. Vou ter com o dono da estalagem, o padrinho Miguel, como gosta que lhe chamem:
- Padrinho, hoje é dia de mercado e queria que me desse o dinheiro para as compras.
O padrinho Miguel vai a uma caixa de madeira e tira dela 3 moedas.
- Toma. Comprai-me tudo e desta vez não te esqueças de nada. Depois volta depressa que temos de falar sobre o sucedido de ontem. Agora vai fedelha e deixa-me.
Não lhe disse mais nada e limito-me a sair porta fora. O mercado estava cheio. Como gosto desta multidão destas gentes simples cheias de historias e sabores. O típico apregoar faz lembrar as lavadeiras da minha infância, por isso sempre que saio para o mercado tento demorar muito tempo, para aproveitar tudo até o mais exótico cheiro das especiarias orientais que vendem na banca que avisto agora ao fundo da rua.