sábado, maio 14, 2005

Hoje sinto-me particularmente feliz. O negócio não vai bem, lá isso é verdade, mas já a minha mãezinha dizia não há nada melhor que um dia depois do outro. Por isso, estou com muita vontade de agarrar esta alegria para tentar resolver os meus problemas.
Sai da estalagem vestido com determinação e fui até a casa do Dr. Medeiros. Se havia alma que me podia ajudar, era ele e isso eu sabia-o muitíssimo bem. O Dr. Medeiros é o médico mais famoso da cidade. A sua popularidade deve-se não só ao facto de ser o único médico das redondezas, mas também ao estilo de vida que leva paralelamente as pomadas para as infecções e aos xaropes de hortelã que receita. Ele é, digamos, um apreciador da noite, da boa vida, do bom vinho e das boas mulheres, mas fá-lo com descrição. Mesmo assim, apenas algumas pessoas conhecem este homem verdadeiramente, e uma delas sou eu. Vou-me rindo enquanto penso no que sei. Ás vezes um criado tem mais poder nas mãos que o seu senhor. Eu tenho sorte de ter saído ao meu pai no que diz respeito a negócios. O meu pai vendia água-ardente rasca, de vila em vila, clamando com todo o seu teatralismo de que se tratava da cura para todos os males. Eu também sou assim. Uso o meu discurso macio, mostro-me pronto a obedecer, mas quando menos esperam, faço com que se deixem levar pela minha conversa, tal como o meu pai fazia.
Chego a porta da casa do Dr. Medeiros e verifico que dela vai a sair a mais nova dos seus dois filhos:
- Menina Sofia, bons olhos a vejam.
- Bons dias Sr. Miguel. Está muito bem disposto hoje. A que se deve tamanha felicidade.
- Oh minha Senhorita, lamento informar-lhe mas não é de sua conta. Mas não fique triste, chegue cá que conto-lhe um segredo. Estou assim porque hoje está muito bonita.
- Sr. Miguel, deixe-se de tolices que já tem idade para ter juízo.
Disse-me ela enquanto corava.
- Bem, se veio falar com meu pai, entre, entre…que ele está lá dentro. Agora eu, vai ter de me desculpar, mas o meu irmão está já ali a minha espera. Vamos dar um passeio até ao jardim. Aproveitar a linda manhã.
- Pois faz nada mais que bem menina. Até logo.
Enquanto dizia isto a Menina Sofia fez uma ligeira vénia e dirigiu-se para o irmão que já me olhava com ar desconfiado. Bati a porta da casa dos Medeiros e fui entrando. A Sra. Silvinha, mulher amargurada do Dr. Medeiros, veio rapidamente a meu encontro. Ela não tinha muito apreço pela minha pessoa devido ao que eu fazia para viver, mas também estava informada que eu mantinha negócios com o seu marido, e a este, ela não se atrevia a contradizer.
- Sr. Miguel. Veio cedo hoje. Por aqui, por favor. O meu marido está na biblioteca.
Acompanhei-a. Como era grande aquela casa. Salas e saletas, e mais quartos e candeeiros de cristal. Uma bela casa, sim senhor. Nunca me cansava de a olhar. Enquanto o faço vamos andando até a biblioteca. A Sra. Silvinha bate à porta, eu entro, e ela afasta-se e deixa-nos a sós.
- Sr. Miguel, ora como tem passado amigo?
- Muito bem Sr. Medeiros. Hoje então, acordei naqueles dias, sabe?
- Se quer que lhe fale a verdade, não sei muito bem o que quer dizer, mas fico feliz por si.
Rimo-nos os dois com cumplicidade. Ele oferece-me bebida, que recuso, e sentamo-nos afastados.
- Pois diga o que o trás por cá desta vez?
- Sabe como é…estou numa situação difícil, uma vez que tenho de administrar a sua estalagem e as vezes o que generosamente me dá, não chega para as despesas.
- Humm… mas este mês já é a segunda vez que cá me aparece a pedir alguma coisa. Agradeço-lhe que tome conta da estalagem por mim, mas como sabe, também é pago para isso, e ultimamente não tem desempenhado o seu papel muito correctamente, pois não?
- Tem razão, mas acredite que não é por falta de esforço. Mesmo ontem, houve briga. Partiram-me duas cadeiras e umas quantas garrafas. Foi algum prejuízo, mas nada que o Sr. Doutor não possa remediar.
- A questão, Sr. Miguel, é que não me agrada a forma como me vem pedir tantas vezes dinheiro.
- Doutor, tenha calma, pense nisto como um investimento. È muito melhor desta maneira, do que eu ter de ir embora, fechar a estalagem e toda a gente ficar a saber que ela é sua, e eu só a administrava para si.
Este meu ultima argumento, atingiu-o bem no fundo. Por dento eu sorria, porque tinha a certeza que depois do que disse, tudo ia correr como eu queria. Ele levantou-se da cadeira e foi até a gaveta da sua secretária. Aí sim, tive a confirmação da minha excelência. Bravo para mim. Bravo, bravo, bravo. Enquanto o Medeiros me entregava as moedas, pensava que, se ainda me sobrasse juventude, um dia iria dedicar-me ao teatro, afinal, sou um artista comprovado!

Sai da casa do médico. Quanto à Sra. Silvinha, essa nem a vi. Também não interessa, não passa de uma velha amuada. Enquanto pensava no que fazer com o dinheiro que me iria sobrar, vi a Clara. Aquela fedelha só me dá trabalho. Ontem saiu sem dizer nada a ninguém. Mas ela já vai ver como é. Afinal quem é que manda na estalagem?